Spiritfarer
Quando Spiritfarer saiu um dos meus colegas disse-me logo que eu tinha de o jogar, que ia adorar, que era a minha cara, … eu olhei de soslaio para a arte e pensei que não combinava bem com o tom geral do jogo. A falta de tempo e uma segunda metade do ano carregada de lançamentos fez-me arrastar o jogo até à silly season, onde tinha pouco para fazer e algum tempo livre para dispensar. O que tenho a dizer é que sou um parvalhão, e se têm Game Pass, façam o doniló enquanto lêem, porque a seguir é para jogar. Mas leiam primeiro, que passei algum tempo de volta do texto.
Em Spiritfarer jogamos como Stella, acompanhada pelo seu gatinho Daffodil. Substituímos Charon o anterior spiritfarer, cuja função é ajudar as almas a aceitar a morte e fazer a transição para o mundo dos mortos.
Engraçado que o tema aparece amiúde retratado no cinema, mas nunca encontrei um jogo que trate esta temática exactamente da mesma forma que este jogo faz.
Vocês sabem como gosto quando faço parte da história e esta me vai sendo dada de forma linear, sem ser empurrada pela goela abaixo, sem confabulações mirabolantes. Aqui a história é calma, com personagens memoráveis, sem nada que te cause receio ou de alguma forma te faça olhar de esguelha para uma questline, afinal estás morto, com o que é que te podem ameaçar mais? Em Spiritfarer ajudas as personagens, a maioria teus familiares, a aceitar o seu estado. Essa função passa invariavelmente por realizares tarefas dadas por eles. Essas tarefas são uma forma um bocado mal disfarçada de nos levarem à aventura e a explorar um mapa que se revela gigantesco para o tipo de jogo que é e nos faz conhecer mais almas, adquirir novas habilidades, recolher mais materiais.
Há um componente grande de crafting. De certa forma tem um bocado de Stardew Valley, mas sem te obrigar meeesmo a fazer as coisas, isto é, certo que consoante os pedidos terás de plantar sementes, transformar recursos, cozinhar, pescar, apanhar fruta ou tomar conta de animais, mas não és literalmente obrigado a fazer isso, nem tens um tempo próprio para fazer as coisas. Se te aparecer que a comida está pronta, não tens de ir a correr tirá-la do forno ou ela queima, se te aparecer que tens de regar o jardim não tens de ir a correr fazê-lo ou a planta morre. Podes fazer tudo no teu tempo, as coisas podem esperar.
O foco do jogo é mesmo a criação duma relação com as outras almas, e se os nossos familiares são memoráveis, com momentos frequentemente enternecedores ou marcantes, também há personagens menos desenvolvidos, que servem muitas vezes para enriquecer a linha de outro personagem, ou somente para nos darem recompensas para conseguirmos obter determinadas habilidades.
Ajudar as almas envolve muitas vezes criar um ambiente único para cada uma delas, o que faz com que Spiritfarer tenha um componente de construção interessante. Já vos disse que estamos num barco? Não? Bem, digo agora. No nosso barco temos de encaixar as construções de edifícios com o espaço disponível. Podemos desenvolver o barco, torna-lo maior, mas não é barato. Tirando o primeiro upgrade, e considerando que adorei as tarefas mundanas que tive de fazer, não voltei a ter dificuldade de espaço, mas há outras dificuldades relacionadas com exploração. Entendam, o jogo não requer grind forçoso, mas de tempos a tempo requer dinheiro ou materiais que podes não ter. Nessas alturas terás que explorar mais ou jogar da maneira mais fácil e criar com os recursos que podes fazer no barco. Eu relembro que adorei essas tarefas e em nenhum momento fiquei aborrecido, mas entendo que as pessoas possam ficar caso joguem da forma que fiz.
Mesmo explorar os oceanos não é uma viagem linear. Por um lado há um componente de metroidvania, onde só acedemos a determinados materiais ou personagens quando tivermos determinada habilidades, por outro frequentemente olhamos para o mapa e iniciamos um projecto que nos afasta da história. Às 20h de jogo percebi que estava atrasadíssimo na história e, ok, admito, fiquei emperrado pois o barco necessitava dum upgrade que me obrigava a avançar na história se queria continuar a explorar. Aí dediquei-me um bocado mais à história, a avançar de forma mais directa, absorver as personagens de forma mais rápida e intensa, algo que tornou o momento de separação uma verdadeira perda.
O jogo cria uma sensação ilusória de diversão, dada a maneira despretensiosa e ligeira como decorre a história, mas a maioria das mensagens é intensa se olhares para além da sua superfície, e a primeira personagem que passou para o além criou-me uma sensação realmente devastadora. Para além disso as suas coisas mantém-se no barco como uma lembrança constante do que foram e do que representam, despoletando-me permanentemente sensações pavlovianas em situações em que anteriormente existiam interacção que não voltam a acontecer.
O jogo é intenso sem o ser.
Até chegar a nossa própria hora pensas que se calhar o jogo é muito lento, mas provavelmente é feito para ser assim, para nos dar tempo para interiorizarmos que os personagens não são meros bidons de piadas, todos eles têm uma história comovente que nos toca. Tudo isto acontece debaixo duma banda sonora excelente, provavelmente apenas uns furos abaixo da franquia Ori.
Tenho muito pouco de errado que possa apontar a este jogo. É difícil defini-lo num género, dado ser uma mistura ponderadamente perfeita de vários géneros que pensava que não dariam para conciliar, abre-nos espaço para jogarmos de formas diferentes, não nos obriga a trabalhar e tudo isto enquanto nos conta histórias tocantes e comoventes ao mesmo tempo que nos faz pensar sobre a nossa própria mortalidade. Com isto acho que já deste tempo para descarregar e instalar o jogo. Não percas tempo. Vai jogá-lo!
- Lançamento: 18 de Agosto de 2020
- Plataformas: PC/Xbox/Switch/PS/Stadia
- Desenvolvedor: Thunder Lotus Games
- Editora: Thunder Lotus Games
- Nota Pessoal: 9/10
- Jogo analisado com uma chave para Game Pass Ultimate gentilmente cedida por Xbox Portugal
- Analisado na versão para PC